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Travessia Vitória - Abrolhos - Santo André

A convite do Comandante Mário (Redboy) desembarquei em Vitória no dia 01 de agosto para me juntar à sua tripulação, para uma das etapas do translado do seu FAST 395 desde Angra até Recife.
Apesar de velejar desde pequeno e ter sido proprietário de alguns veleiros entre 19 e 26 pés, esta seria a minha primeira experiência em um veleiro desse porte e minha primeira travessia mais longa. Tinha algumas dúvidas sobre como me sentiria 5 dias dentro de um veleiro em mar aberto. Relato de amigos que já viveram a experiência de passar mal a bordo de veleiros, contam que o enjôo tem 3 fases distintas: na primeira, você acha que vai morrer; na segunda, você quer morrer. Na terceira ,e pior fase, você quer morrer e sabe que não vai... Assim, primeira providência a ser tomada: uma caixa de Dramin.

Do aeroporto, direto para o Iate Clube do Espírito Santo, para conhecer pessoalmente o Mário, sua almiranta Cris e seu filho Tininho que, comigo, formariam a tripulação para a etapa.
Feitas as apresentações, hora de me familiarizar com o barco e seus equipamentos. Localização das adriças, escotas, equipamentos de emergência, funcionamento do piloto automático, leme de vento, gps, etc...
Primeira noite dormida nas águas tranqüilas da marina do ICES e ETD previsto para às 07:00 do dia seguinte. 

Às 06:00 todos de pé, café da manhã, vela Grande em cima, amarras soltas e saímos motorando até a saída do canal do porto de Vitória quando abrimos a Genôa e desligamos o motor. Velejada tranqüila, vento de alheta de boreste com 15 kt, fazendo de 6,5 a 7 kt de velocidade , vimos, aos poucos, a cidade ficando para trás e logo já não víamos mais o litoral. Logo começamos a avistar as baleias jubarte que são muito comuns nessa época do ano no sul da Bahia. Vimos a primeira, a segunda, a terceira e depois de avistarmos muitas, aquilo se tornou uma rotina ao longo de toda a viagem.

17:30 mar ainda tranqüilo, vento ainda de 15 kt, começa a escurecer. Hora de rizar a Grande. Mário perto do mastro para trazer a testa da vela para o primeiro rizo, Tininho na catraca da adriça para baixar e depois caçar a vela e eu em outra catraca para caçar o cabo do rizo na valuma. Manobra perfeita, hora de se colocar o cinto de segurança, uma roupa mais pesada, estabelecer os turnos de vigia e nos prepararmos para a noite que já caía. Mário no turno de 18 às 20, eu de 20 às 22 e Tininho de 22 à 00. Cris não participa da vigia mas seu trabalho não é menor. Ela, sempre atenta e prestativa, cuida para que nunca falte o café, as comidinhas, o refrigerante etc, para quem está no convés.

19:00 Hora do jantar. Epa! Lembrei que até agora não senti o tal enjôo. Acho que o Dramim está cumprindo direitinho o seu dever. Eu que até então estava maneirando na comida e só ingerindo frutas e biscoito, resolvo arriscar e traçar uma lasanha e, imaginem, dentro da cabine, o que para a maioria das pessoas é fatal...e nada do tal enjôo. Volto ao convés com aquele ar de vitorioso. Imagina gostar do mar, ter o sonho de ter um barco, concretizar esse sonho e depois descobrir que vira do avesso toda vez que é embalado pelos braços de Netuno...é barra....

20:00 Entro no meu turno, confiro nossa rota no gps, olho o windspeed e surpresa!!! vento de 18 kt com rajadas de 20 kt. Aviso ao Mário que ainda está no convés. Ele me diz que se vento passar de 20 kt diminuiremos a genôa.

20:30 Ouço o eólico zunir num tom mais agudo, olho o windspeed que marca 22 kt e rajadas de 25 kt. Hora de diminuir a genôa. Manobra efetuada e a velocidade do barco cai de 9 para 7,5 kt. As ondas, vindo também pela alheta de boreste começam a aumentar de tamanho e de vez em quando quebram a barlavento e lavam o convés e conseqüentemente a gente também. (Fernando Borges, obrigado pela roupa de mau tempo, sem ela eu estaria frito, ou melhor encharcado)

21:30 Vento de 28 kt com rajadas de 30 kt. O pau começa a quebrar. Hora de fechar o que restava da genôa. Todos no convés, exceto Cris que de vez em quando chegava na gaiúta que dá para o convés e pedia para dar um jeito naquilo, pois o barco estava batendo e rangendo muito e que estava difícil ficar na cabine. Mário me olhou como quem diz...acho que já fizemos o que podíamos....agora é agüentar. Trazer a Grande para o segundo rizo naquela altura do campeonato seria uma manobra muito arriscada e complicada. Como diria meu saudoso amigo e velejador Luiz Fernandes " seria mais complicado do que embrulhar velocípede" .

23:00 Vento ainda a 28 kt e o barco fazendo 7 a 8 kt com a genôa fechada e a Grande no primeiro rizo. Embora balançando bastante, o barco se comportava de forma excepcionalmente firme, surfando nas ondas e buscando o seu caminho comandado pelo leme de vento (grande invenção). Resolvo descer para a cabine e tentar dormir (?) um pouco, pois voltaria ao meu turno às 02:00. Me acomodo no beliche da sala encostado no suporte dos brandais que vibravam a cada rajada mais forte. Dormir? quase impossível...

23:40 Acordo (?) com um estrondo vindo do convés seguido do barulho de vela batendo loucamente. Levanto assustado, subo na escada que sai da cabine, e pergunto ( com medo da resposta) o que tinha acontecido.
- Quebrou a retranca!!!.... diz Tininho.
Botei o cinto de segurança e comecei a subir a escada, imaginando pedaços da retranca voando loucamente pelo convés presos à vela que continuava a bater. Quando finalmente cheguei ao topo da escada e vi a retranca inteira, perpendicular ao barco e com o conjunto de redução pendurada, entendi realmente o que tinha acontecido. Uma tentativa de ajustar a rota através da regulagem do leme de vento ocasionou uma arribada além do necessário. Como estávamos com vento pela alheta, a arribada levou o vento para a popa provocando o temido "jibe involuntário" , que quebrou o mosquetão que liga o conjunto de redução ao traveler.  Ao comando do Mário, desengatei o leme de vento e assumi a roda de leme para dar um pouco de seguimento ao barco, que no momento estava parado, para que, alinhado com o vento, permitisse ao Tininho "pescar" a escota e trazer a retranca para cima do barco, de forma a permitir a colocação de uma nova manilha. Reparo efetuado habilmente pelo comandante, voltamos a velejar. Adrenalina a mil, todo mundo ligado, ninguém queria saber mais de dormir. Todos no convés o resto da madrugada.

05:40 Vento 25 a 28 kt, velocidade do barco 7 kt, mar ainda alto. Algumas ondas ainda lavam o convés. Uma mais forte arranca os dois galões de 20L de óleo diesel que estavam presos (nem tanto) no guarda-mancebo. Um vai direto pra água e o outro o Tininho consegue segurar quando seguia o mesmo caminho do primeiro.

06:00 Dia amanhecendo. De dia todos os fantasmas parecem menos assustadores. Será?
A cem metros da proa, exatamente no rumo do barco, sobe uma enorme nuvem de água. Alguém grita BALEIA!!! Eu, que estava mais próximo da roda de leme me preparei para desengatar o leme de vento e mudar o rumo. Mas aí a grande dúvida. Desviar? Pra que lado? Ela está parada? Está indo de bombordo para boreste ou ao contrário? O barco a 7 kt se aproximava rapidamente e cheguei a ver a grande mancha cinza abaixo da nuvem de água. O comandante, de forma acertada (confirmado pelo fato de estar escrevendo agora esse relato) determinou: MANTÉM O RUMO!!! Segurei a roda de leme e esperei pelo impacto que não veio. Olhei para os lados e então, a boreste, vimos a menos de dez metros do barco, para nossa surpresa, não uma, mas três baleias. Uma enorme, outra um pouco menor e um filhote. O filhote, que passou mais perto do barco, tinha pelo menos uns 6 metros de comprimento. Me lembrei de alguns relatos trágicos de acidentes dessa natureza e posso dizer que estou muito contente de não fazer parte dessa estatística. Fico imaginando o estrago que pode ser causado a um veleiro, independentemente do seu tamanho, o choque com um animal desse porte em alto mar.

11:00 TERRA À VISTA ! ! ! Abrolhos surge lindo no horizonte exatamente na nossa proa... (grande invenção esse tal de GPS). Contato com o rádio-farol de Abrolhos que nos dá as boas vindas e nos orienta para uma poita ao norte do arquipélago.

12:00 Hora do comandante inaugurar seu novo sextante e colocar em prática seus conhecimentos recém adquiridos de navegação astronômica. Sextante em punho, barco balançando, comandante agarrado na targa para não cair na água (fiquei imaginando que aquela situação proporcionaria a leitura de um ângulo do sol com o horizonte não muito confiável) e pimba...ângulo aferido e comandante para a cabine para consultar as tabelas e plotar a nossa posição na carta náutica. Bem, a latitude tinha um erro até razoável de 20 milhas, mas a longitude infelizmente não foi possível ser plotada, pois não tínhamos cartas do interior do Gabão ( hehehe bricaderinha comandante) .

14:00 Contornamos a primeira ilha e já abrigados do vento e das ondas nos preparamos para a manobra de laçar a poita. Um catamarã que estava ancorado em outro ponto da ilha nos chamou no VHF e sugeriu que jogássemos âncora próximo a ele pois era bem mais abrigado. Concordamos e jogamos a âncora no local indicado.
Descemos a vela e todos pra água para um banho relaxante, aproveitando para checar se a âncora estava firme.
Hora também da Cris por em prática seus excelentes dotes culinários na preparação de uma receita experimental de frango com molho doce. Explico...Uma acidental troca entre as tampas do saleiro e do açucareiro fizeram com que o frango fosse temperado com açúcar. Engano felizmente percebido a tempo, o sal foi acrescentado, porém o açúcar não pôde ser removido por já ter sido absorvido pela tenra carne da penosa. Vamos em frente e ver no que vai dar. Resultado ....o frango estava maravilhoso e vai para o livro de especialidades da Cris.
O resto da tarde foi usado para a deliciosa tarefa de colocarmos o sono em dia.

DOIS DIAS EM ABROLHOS

Já tinha tido a oportunidade de estar em Abrolhos há dois anos, com um grupo de mergulho de Brasília a bordo de um catamarã a motor de nome Horizonte Aberto, de propriedade do Pierre. Ele é baseado em Caravelas e freqüentemente leva grupos para mergulho em Abrolhos que é considerado um dos melhores pontos de mergulho do Brasil. Suas águas transparentes e repleta de vida marinha são, sem dúvidas, a sua grande atração. O arquipélago é formado por cinco ilhas e apenas uma delas é habitada pelo pessoal da marinha que cuida do farol e opera a estação de rádio e por funcionários do IBAMA que são responsáveis pela preservação do parque. As regras são rígidas e o desembarque somente pode ser dar em uma das ilhas (Siríba) e mesmo assim, quando acompanhado dos funcionários. Além dos pássaros, não se tem muito o que ver, mas vale a pena simplesmente pelo prazer de pisar e caminhar em terra firme depois de algum tempo a bordo. Passamos dois dias mergulhando, comendo (Epa! lembrei que não tomo Dramim a mais de 24 horas e nada de enjôo) dormindo e tirando fotos.

04 de AGOSTO 14:00 - Nos preparamos para iniciar a segunda parte de nossa viagem. Levantamos âncora e apesar do vento tranqüilo de 13 a 15 kt e a pedido da Cris, velas no primeiro rizo . Sugestão aceita por todos (cachorro mordido por cobra tem medo de lingüiça) e deixamos Abrolhos rumo a Santo André (10 milhas ao norte de Porto Seguro).

18:00 Apesar do vento se manter abaixo de 15 kt, hora de colocar a Grande no segundo rizo. Essa região é conhecida como a região dos "Pirajás". Nuvens carregadas (cumulus nimbus) isoladas, que de dia podem ser avistados a tempo de forma a que se possa preparar o barco para os ventos e chuva fortes. Mas à noite, como não se pode avistar a sua aproximação, pode pegar o velejador desprevenido, com todos os panos em cima e aí não se pode fazer mais nada a não ser agüentar a pauleira que dura de 30 a 50 minutos, mas pode fazer um estrago considerável. Ao contrário do que se esperava, toda a noite foi com mar tranqüilo, vento estável a 15 kt, céu estrelado, lua iluminando o convés do Redboy. Enfim, a velejada maravilhosa sonhada por todo velejador e que faz você pensar que vale a pena passar pelos momentos de barra pesada para desfrutar de momentos como esse.
Os turnos de vigia foram cumpridos à risca e intercalados com quatro horas de sono tranqüilo.

08:00 Acordo com o barulho do motor sendo ligado. Subo ao convés e percebo que o vento parou e já estamos avistando o litoral ao sul de Porto Seguro. Agora é a minha vez de por em prática os conhecimentos adquiridos no curso de mestre. Pego a carta e começo a buscar em terra pontos notáveis que indiquem a nossa posição. Uma marcação do morro tal aqui, uma marcação da igreja tal ali...não, o morro é outro....mas a igreja tá parecendo com essa aqui.... muito complicado....mais fácil olhar no GPS....

09:00 Través de Porto Seguro. Depois de 4 dias, sinal no celular. Hora de ligar pra casa para tranqüilizar a família que está se descabelando de preocupação e achando que você é um louco de entrar num "barquinho" e se afastar de terra 70 KM por quatro dias. Mal sabem que certamente correram mais risco do que eu, simplesmente ficando em casa.
Hora também de sacanear os amigos que aquela hora já estavam trabalhando...
-Jorginho !! É o Edson....Tudo bem?
-Tudo, onde você está? Estou tentando te ligar há 4 dias...
-Estava em Abrolhos, lá não pega celular..Agora estou a bordo de um Fast395, a quatro milhas no través de Porto Seguro, o dia está lindo e o sol maravilhoso.....
-FILHO DA P.....

11:00 Estamos em frente a Santo André. Como a entrada na foz do rio é complicada, chamamos pelo rádio um velejador que mora por lá e que gentilmente ajuda na entrada dos veleiros que chegam. Como estávamos sendo esperados por volta de meio dia ele ainda não estava por lá. O jeito era aguardar ou tentar uma entrada por conta própria baseada apenas nas cartas e nas posições previamente carregadas no GPS. O comandante optou pela segunda possibilidade e lá fomos nós. Um na proa de olho na água e um de olho no ecobatímetro. A passagem é muito estreita e muito rasa, mas conseguimos achar o caminho das pedras, ou melhor, o caminho sem pedras.

Santo André é um pequeno vilarejo na foz do rio João de Tiba e pela sua beleza e pelas suas águas abrigadas tem sido uma opção para quem veleja pelo litoral sul da Bahia e quer fugir do tumulto de Porto Seguro. Na margem do rio tem um restaurante de nome Gaivota que dá todo apoio ao veleiros que param por lá. Liberam o chuveiro, os banheiros e ainda fornecem refeições de excelente qualidade e a preços bem razoáveis.
Minha última noite a bordo foi tranqüila nas águas mansas do rio João de Tiba. Juro que até senti falta do balanço do barco.

COMENTÁRIOS ADICIONAIS

-Três regras básicas devem ser seguidas por aqueles que, como eu, tiverem o privilégio de um convite para vivenciar essa experiência fantástica de ser tripulante por 5 dias de um veleiro em uma travessia.
1-O espaço é pequeno, portanto tente incomodar o menos possível.
2-A faina de bordo é dura. Coisas para lavar, arrumar, carregar etc. Tente ajudar o máximo possível.
3-Procure se adaptar à rotina de bordo.
- Na rotina de bordo do Redboy, dois horários adquirem um caráter muito especial. Onze horas da manhã e seis da tarde a Cris carinhosamente, prepara o whisky do comandante. Eu que não gosto dessas coisas fui OBRIGADO a me adaptar a essa situação e acompanhar o comandante nessa difícil tarefa.
-Acho que qualquer um que goste de veleiros e de mar deve, pelo menos uma vez na vida, experimentar uma travessia de alguns dias em mar aberto. Mesmo que seja pra dizer no final: "não gostei, essa não é a minha praia, prefiro não me arriscar e ficar aqui pelo lago ou pela baía".
Medo? Claro que sim. Só um louco irresponsável não teria medo de estar à noite, no meio do oceano, a milhas distante de terra firme, cercado de ondas enormes, dentro de uma "cápsula" de fibra de vidro, com centenas de peças e equipamentos que podem quebrar ou não funcionar. Mas esse medo pode ser racionalizado e transformado em cautela e segurança que, aliados à boa manutenção do seu equipamento, lhe proporcione momentos incríveis como pude vivenciar nesses 5 dias e com certeza correndo menos riscos do que qualquer cidadão na "segurança" de qualquer grande cidade.
-Meus sinceros agradecimentos ao Mário pela oportunidade e pela paciência em tentar me transmitir uma pequena parte de sua grande experiência do mar. À Cris, pelo carinho, pela atenção e pelos quitutes a bordo. Ao Tininho, pelos papos na madrugada e pela força (haja força pra segurar uma retranca solta com 30kt de vento) nas horas de pauleira.

Um grande abraço

Edson Sampaio / Brasília-DF

PS: Ah...ia me esquecendo Enjôo???.... Que enjôo????...

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